A TVI anunciou uma nova série dos Morangos com Açucar com a participação de duas personalidades do instagram, que não são actores, e gerou-se logo uma “polémica do dia” sobre cunhas e se estas pessoas “merecem”. Deixem-me oferecer-vos outra perspectiva:
Em 2003, quando sai os Morangos com Açucar, não existia youtube nem instagram. Na televisão, para um puto, só havia os Morangos, a Malhação ou o Curto Circuito . A internet era, essencialmente, o Msn, o hi5 e o site hi5 porcas.
Mas hoje em dia a atenção está fragmentada. Está no instagram, no snapchat, no tiktok ou no youtube, entre outros. Dentro desses espaços está ainda mais fragmentada em milhões de sítios. Segues x e y. O outro segue z.
Como é que acham que a TVI vai divulgar esta nova série ao seu publico alvo? Através de anúncios na televisão que eles não estão a ver? Através de outdoors para onde eles não estão a olhar?
Ir buscar personalidades digitais para o elenco da série é a coisa mais inteligente que a TVI poderia fazer.
Isto é um fenómeno muito interessante e revelador do estado dos media “tradicionais”. O Curto-circuito, por exemplo, começou a ir buscar à internet alguns dos seus apresentadores. O Conguito, a Bumba na Fofinha e depois o Sensivelmente idiota.
Foi-me dito que os programas com mais audiências são aqueles em que determinados youtubers são os convidados/entrevistados. Isto marca uma clara distinção no tempo. As pessoas costumavam ir à tv para ganharem exposição. Um programa de tv era o gerador de atenção para o indivíduo. Neste momento, o indivíduo – através da sua base de dados de seguidores – é o gerador de atenção para o programa.
Outros movimentos semelhantes podem ser vistos na rádio: com a contratação do Sena na Cidade e o Conguito e a Mafalda Castro na Mega. A mesma Mafalda Castro foi recentemente contratada pelo The Voice na RTP.
No publishing também: com a revista d’A Maria Vaidosa e a da SEA3PO (viram a fila monumental no Colombo para ela assinar autógrafos?).
Fazem ideia que algumas destas pessoas tem mais visualizações nas suas stories de instagram do que a maioria dos canais do cabo? E que, mesmo assim, esses canais cobram mais por expôr publicidade do que essas pessoas?
Sendo que é claro que alguns meios já perceberam isto, é da minha percepção que muitas destas “personalidades digitais” ainda não compreenderam verdadeiramente o poder que têm nas mãos. Porque assim que eles perceberem que, ao serem entrevistados num programa, as audiências sobem e o programa vai utilizar esses números para vender publicidade para se sustentar, vão perceber que o poder está todo do lado deles. O meio precisa deles e não o contrário. Acredito que num futuro bem próximo a mera ida de certos youtubers/instagrammers a um programa como entrevistados vá passar a ser uma presença paga.
Muito gente acha chocante as quantias de dinheiro que este mercado dos produtores de conteúdos digitais já mexe. Eu tenho a certeza que só estamos a ver a ponta do icebergue.
E podem dizer-me “mas ó Francisco, e isto não é injusto para os miúdos todos que estudaram representação/rádio/televisão?”. Imaginem-se a vocês ao leme deste negócio: a vossa empresa precisa de clientes para vender o vosso produto para pagar ordenados e deixar os accionistas felizes. Querem preencher uma vaga de emprego e têm dois candidatos. Um estudou e tem o diploma mas não tem carteira de clientes. O outro, não estudou e pode levar um atraso em termos de skills em relação ao primeiro mas, à partida, traz com ele uma carteira de clientes de 300 mil pessoas que vos vai deixar exponencialmente mais perto do objectivo. Digam-me nos comentários qual deles é que vocês escolhiam.
Se calhar a pergunta não devia ser sobre a injustiça de escolher um ou outro mas o que é que vocês podem fazer para não se deixarem ultrapassar.