“Quando vês o Narcos não ficas cheio de vontade de ser narcotraficante?” dizia-me uma amiga minha. Gosto bastante da série Narcos. É entretenimento do mais alto nível e o Wagner Moura está excepcional. No entanto, a série tem um grave problema. Mas para poder escrever sobre ele tenho de recuar um pouco mais na história:
Quando qualquer cineasta decide pegar no tema do Holocausto debate-se com um grande problema: Como é que se representa o Holocausto? Como é que se põe numa “caixinha” algo tão extremo, complexo, obsceno e trágico? Há muitos estudiosos da representação do Holocausto (e eu tive um deles como professor na faculdade – foi um semestre levezinho sobre o Holocausto como podem calcular) porque há a clara consciência de que é preciso um grande sentido de responsabilidade ao tocar neste assunto. É a forma como as pessoas vão lembrar e entender algo de extrema importância.
Muito resumidamente, há duas grandes problemáticas na representação do Holocausto:
1) A objectificação das vítimas
Sempre que se mostra uma vala comum cheia de cadáveres ou uma multidão a entrar numa câmera de gás. Isso é objectificar as vítimas. É representá-las como uma massa incógnita. Homógenea. Cria distanciamento emocional.
2) A romantização dos Nazis
Um terreno altamente complexo. Por um lado, pode-se humanizar demasiado a personagem, criando empatia com o espectador. Por outro, pode-se fazer dela quase um desenho animado, como no Indiana Jones, retirando-lhe a gravidade dos actos. Por outro ainda, há o conhecido efeito psicológico sobre a atracção da audiência por vilões. Veja-se The Joker, Hannibal Lecter, Darth Vader. Sentimo-nos atraídos por vilões porque eles são capazes de fazer aquilo que nós nunca conseguiríamos/poderíamos. Reflectem o nosso lado mais negro. É altamente perigoso, numa representação do Nazismo, criar este efeito.
Isso faz-me chegar ao Pablo Escobar. Tem havido, nos últimos anos, e com ponto alto no Narcos, um processo de “cool-ificação” da figura do Escobar. A frase que a minha amiga me disse e que abre este texto faz todo o sentido. Porque a representação que é feita do Escobar cria essa imagem. Ele é omnipotente. Mas também é altamente humano com a família. A personagem é humanizada e é-lhe dado o aspecto cool de quem pode tudo. As suas vítimas são praticamente “inexistentes”. Sabemos que ele coloca bombas em todas as esquinas e que os seus sicarios matam a torto e a direito. Mas pouco mais. O lado verdadeiramente cru e duro da destruição que ele provoca nunca nos é mostrado. E quando é mostrado – como na cena em que o Escobar dança com a mulher enquanto os seus sicarios matam dezenas de polícias pela cidade – as vítimas são objetificadas e o vilão glorificado de forma cool.
Na realidade, estima-se que o Pablo Escobar tenha sido responsável pela morte de entre 5 mil a 10 mil pessoas. Dos quais 2800 polícias.
Constantemente oiço pessoas a falar do Pablo Escobar como uma espécie de herói do povo. Um empreendedor que vindo do nada chegou a 7º homem mais rico do mundo. Um ideal de self made man. Um Che Guevara/Robin dos Bosques anti poder. Não foi. Foi um assassino em massa. Mas a culpa não é de quem pensa isto. É da forma irresponsável como o Escobar é representado na cultura popular. A série, como entretenimento, continua a ser muito boa. Mas há que ter noção disto.
P.S: só vou no início da segunda temporada. Quem comentar com spoilers vai levar com a visita de um sicario.
P.S: o Wagner Moura é mesmo um grande, grande actor.